quarta-feira, 14 de outubro de 2009

(...)
- Eu acreditava que não iamos ter mais cenas - dise-lhe enquanto andava de um lado para o outro.
Não me respondeu, e acrescentei:
- Mas que seja a última.
Senti que as lágrimas paravam e um momento depois, por baixo delas, respondeu-me:
- Como quiseres.
Mas caiu imediatamente no sofá, a soluçar:
- Mas o que é que eu te fiz? Que é que te fiz?
(...)
A minha voz era certamente muito mais dura que as minhas palavras. Inês levantou-se e apoiando-se no braço do sofá repetiu, gelada:
- Como quiseres.
Era uma despedida. Eu ia acabar e adiantaram-se-me. O amor próprio, o vil amor próprio, tocado em carne viva, fez-me responder:
- Perfeitamente. Vou-me embora. Que sejas feliz... outra vez.
Não compreendeu e olhou-me com estranheza. Tinha cometido a primeira infâmia; e, como costuma acontecer nestes casos, senti vertigem de me enlamear ainda mais.
(...)
Compreendeu melhor o meu sorriso que as minhas palavras e, enquanto fui buscar o meu chapéu ao corredor, o seu corpo e a sua alma caíam na sala.
Então, nesse instante em que cruzei a galeria, senti intensamente quanto a amava e o que acabava de fazer. Aspiração de luxo, matrimónio distinto, tudo se me evidenciou como uma chaga da minha própria alma. E eu que me oferecia em leilão às feias mundanas com ortuna, que me punha a venda, acabava de cometer o acto mais ultrajante com a mulher que me amou demasiado... Fraquesa no Monte das Oliveiras, o momento vil num homem que não o é, tem o mesmo final: ânsia de sacrifício, da mais alta reconquista do próprio valor. E depois a imensa sede de ternura, de apagar beijo após beijo as lágrimas da milher adorada, cujo primeiro sorriso após a ferida que lhe causámos é a mais bela luz que pode inundar o coração de um homem.
E acabou-se! Não me era possível perante mim mesmo voltar a tomar o que acabava de ultrajar desa maneira; já não era digno dela nem a merecia mais. Num segundo tinha enlameado o amor mais puro que homem algum tinha sentido sobre si e, com Inês, acabava de perder a felicidade, impossível de reencontrar, de possuir quem nos amou intimamente.
Desesperado, humilhado, cruzei a porta pela frente e vi-a deitada no sofá, soluçando a alma inteira sobre os seus braços. Inês! Perdida já! Senti mais funda a minha miséria perante o seu corpa, todo o seu amor, abalado pelos soluços de uma alma morta. Quase sem me dar conta, detive-me.
- Inês! - chamei-a.
A minha voz já não era a mesma de antes. E ela notou-o bem porque a sua alma sentiu, aumentando o seu soluças, a desesperada chamada que o meu amor lhe fazia, desta vez sim, imenso amor!
- Não, não... - respondeu-me. - É demasiado tarde!
***
(...)
Sai imediatamente de Buenos Aires sem ver quase ninguém e menos ainda aquele meu namoro fortuna... Voltei passado oito anos e soube então que se tinha casado, seis meses depois de eu me ter ido embora. Voltei a afastar-me e há um mês regressei tranquilo e em paz.
Não tinha voltado a vê-la. Era para mim como um primeiro amor, com o encanto dignificante que um idílio virginal tem para o homem feito, que depois amou cem vezes... Se você alguma vez for amado tal como eu o fui e ultrajar como eu o fiz, compreenderá toda a pureza que há nas minhas recordações.
Até que uma noite tropecei nela. Sim, essa mesma noite no teatro... Compreendi, ao ver o corpulento armazenista que era o marido, que se tinha precipitado no casamento, como eu ao Ucayali...
Mas ao vê-la outra vez, a vinte metros de mim, olhando-me, senti que a minha alma, a dormir em paz, surgia sangrando a desolação de a ter perdido, como se não tivesse passado nem um só dia desses dez anos. Inês! A sua beleza, o seu olhar, única entre todas as mulheres, tinham sido meus, bem meus, porque me tinham sido entregues com adoração. Também você apreciará isto algum dia.
Fiz tudo o que é humanamente possível para esquecer, apertei os dentes tentando concentrar todo o meu pensamento no palco. Mas a prodigiosa partitura ad Wagner, esse grito de paixão doentia, acendeu em chama viva o que eu queria esquecer. No segundo ou no terceiro acto não aguentei mais e virei a cabeça. Ela também sofria a segestão de Wagner e olhava-me. Inês, minha vida! Durante meio minuto, a sua boca, as suas mãos, estiveram sob a minha boca e os meus olhos e durante esse tempo ela concentrou a sua palidez a sensação dessa felicidade morta há dez anos. E Tristão sempre, as suas lamentações de paixão sobre-humana sobre a nossa felicidade enlevada!
Levantei-me então, atravessei as poltronas como um sonâmbulo e avancei pelo corredor aproximando-me dela sem a ver e sem que me visse, como se durante dez anos eu não tivesse sido um miserável.
E como há dez anos atrás, sofri a alucinação de que levava o chapéu na mão e ia passar à frente dela.
Passei, a porta da frisa estava aberta, e detive-me, enlouquecido. Como há dez anos atrás sobre o sofá, ela, Inês, deitada agora no divã da antecâmara, soluçava a paixão de Wagner e a sua felicidade desfeita.
Inês!... Senti que o destino me colocava num momento decisivo. Dez anos!... Mas teriam mesmo passado? Não, não, Inês minha!
E como então, ao ver o seu corpo todo em amor, sacudido pelos soluços, chamei-a:
- Inês!
E como há dez anos, os soluços redobraram e, como então, respondeu-me sob os seus braços:
- Não, não... É demasiado tarde!...

("A morte de Isolda" de Haracio Quiroga in " Contos de amor, loucura e morte")

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